quinta-feira, 25 de março de 2010

Mamute sobre rodas!



Munch_1200TTS.jpg
O que mais impressiona nesta moto, se é assim que podemos chamá-la são os freios a tambor de duas sapatas primárias (twin-leading shoe), extremamente eficiente. Um freio a tambor não é inerentemente menos potente ou pior que um freio a disco, principalmente em motos, onde a força de frenagem é aplicada no próprio eixo da moto, desta forma sendo livre de reações indesejadas como em um freio a disco. Mas, como qualquer freio na verdade apenas transforma energia cinética em calor, seu comportamento a altas temperaturas (como ele dissipa, se livra desse calor) é o que realmente importa, e nisso os discos são imbatíveis. Mas no início dos anos 60 isto não era tão claro, e Münch criador desta moto, criou talvez o melhor dos tambores para moto jamais criados.
Primeiro, o diâmetro era enorme, nada menos que 250 mm (quase 10 polegadas), o que fazia a roda da motocicleta que o usava ser praticamente só um tamborzão com uma pequena coroa de roda raiada. Esse tamanho todo, além de maior área de frenagem, permitia mais área para dissipação de calor, ajudado por aletas e furos colocados estrategicamente. Münch usinava todas as peças deste conjunto a partir de alumínio forjado e fundido, sem nenhuma consideração ao custo. O resultado era algo caríssimo, complexo, de aparência e funcionamento sensacionais, mas já no caminho da obsolescência. Um arauto do que seria a história da vida de nosso herói...
Durante o ano de 1964, Münch criou um motor de quatro cilindros em linha e 500 cm³, para competições de GP. Logo em seguida, no ano de 1965, Jean Murit, um francês de Paris obcecado por motocicletas e amigo de Münch, teve a idéia de criar uma moto maior e mais potente do que qualquer coisa já vista. “A melhor moto, não importando o custo”, foi o pedido do francês. Münch tinha certeza que poderia construir uma moto assim em sua oficina, mas um motor já existente diminuiria sobremaneira a dificuldade. Münch logo descobriria uma saída para este problema, em Neckarsulm.
A empresa NSU criou sua fama construindo motocicletas desde o século dezenove, e era o maior fabricante do mundo em 1954, mas a partir de 1960, estava se concentrando em automóveis. O primeiro deles no pós-guerra foi o Prinz de 1958 (acima), equipado com um motor traseiro bicilíndrico de 583 cm³, mas o que chamou a atenção de Münch foi o seu recém-lançado irmão maior, o Prinz 1000 (abaixo). O carro era equipado com um quatro em linha de um litro, refrigerado a ar, em alumínio e camisas de ferro fundido, comando de válvula único no cabeçote acionado por corrente dupla, e duas válvulas em uma câmara de combustão hemisférica. Na versão básica fornecia 44 cv a 5.500 rpm, e na esportiva TT, 56 cv a 5.800. Ao abrir a tampa traseira, Friedl Münch olhou bem para aquele motor, e, sem saber que ligaria o resto da vida àquele pedaço de metal, exclamou: "Isto é um motor de motocicleta!"
O que Münch fez em seguida foi criar a primeira moto do gênero que conhecemos hoje como superbike. Colocou o motor do NSU TT transversalmente num quadro perimetral de tubos de aço soldados, extremamente semelhante ao das Norton Featherbed, e acoplou um câmbio Horex de quatro marchas, e rodas raiadas com os seus já famosos freios gigantescos.
Quando Münch colocou seu monstro para rodar pela primeira vez, estava presente além do dono Murit, toda a diretoria da NSU (que estava interessadíssima na moto) e o jornalista da revista alemã Das Motorrad, Ernst Leverkus. Foi Leverkus que tornou Münch famoso nos meios motociclísticos da noite para o dia, quando contou na revista que a moto passava facilmente dos 200 km/h, e era capaz de viajar tranquilamente nas Autobahnen o dia todo a 180, com um conforto e tranqüilidade nunca antes visto numa moto a estas velocidades. Leverkus contou também que a roda traseira teve que ser alterada para uma sólida de liga de magnésio porque os raios se torceram na primeira acelerada. Quando se escreve uma coisa dessas, pode-se quase ouvir o sonoro palavrão em meio a risadas que os leitores coletivamente soltam ao ler...
Logo apareceram 16 pedidos firmes para Friedl Münch reproduzir a moto de Murit, jogando definitivamente o alemão, totalmente despreparado, no mundo dos produtores de veículos. Para a versão de "série" da moto de Murit, Münch usou o mesmo quadro, mas colocou o câmbio numa carcaça exclusiva fundida em Elektron (uma liga de magnésio e alumínio, levíssima). A corrente de transmissão era enclausurada em duas peças fundidas também em liga de magnésio, e permanecia em banho de óleo. O conjunto funcionava também como balança traseira. A liga de magnésio era a base para grande parte da moto, e até a rabeta/para-lama traseiro era uma peça fundida em Elektron. Um grande tanque de 25 litros era confeccionado a partir de chapa de alumínio. O motor recebia dois carburadores duplos horizontais Weber DCOE (depois injeção Kugelfischer), e alteração em comando e cabeçote, além de pistões especiais para maior taxa, para fornecer 71 cv. Logo, apareceriam motores de 1.200 e 1.400 cm³.
Friedl Münch e a Münch 1200 TTS. Notem que o farol duplo dianteiro também vinha do NSU Prinz!
Nascia a Münch 4-TTS "Mammut" (Mamute). O paquiderme de Münch era simplesmente a mais cara e mais sensacional moto existente no mundo então. Feita praticamente a mão durante as três décadas seguintes, a Mammut é uma lenda sussurrada por conhecedores mundo afora. O nível de detalhe e complexidade da moto é impressionante, cada peça sendo extensamente usinada a em todas as suas superfícies, chegando a uma perfeição de forma e função raramente vista. Apenas 476 delas existem, e cada uma delas é um pouco diferente da seguinte, de forma às vezes só aparente para o próprio Münch.
Várias tentativas foram feitas para fazer da Münch uma moto de produção seriada, sempre por milionários que já tinham a sua Mammut, e, portanto, conheciam a bagunça que era o modus operandi da empresa, mas todas falharam, sempre por causa do próprio Münch. Incapaz de fazer nenhum compromisso em sua criação, Friedl seguia modificando e alterando as motos indefinidamente. Não foram raras as pessoas que esperaram três anos para ter sua moto, mesmo depois de colocar uma grande quantia de dinheiro na mão de Münch para que ele começasse a usinar o magnésio, e mesmo depois de repetidas visitas à fábrica. O preço da moto era monstruoso, algo como duas ou três vezes o preço da mais cara moto de série. Münch já foi definido como "um sorridente gnomo alemão com micrômetros ao invés de dedos, isolado em sua toca fazendo motocicletas", uma definição estranhamente precisa.
E como é uma Münch Mammut? Paquidérmica, super-poderosa e magnífica. Diferente de uma supermoto japonesa de hoje, a Münch tem uma força a todas as rotações que só poderia vir de um motor de automóvel. Seria como um automóvel com um enorme motor de caminhão: a potência pode não ser tão impressionante hoje em dia (como certamente era em 1967), mas a maneira como ela aparece e a força disponível em toda faixa possível de rotação é indescritível. Sempre usou o freio a tambor inventado por Münch nos anos 60; ele jurava, mesmo nos anos 90, que e traquitana funcionava melhor que discos duplos. Mas a melhor definição foi dada por o dono de uma Mammut de 1973, um monstro de 1.286 cm³, injeção de gasolina e quase 140 cv: “Não é uma Ducati: ela vai te meter em encrenca.”
Mas tem o valioso apelo de ser uma obra que veio direto da mão do seu criador, sem filtro algum. Muitas peças com certeza foram ao torno pela mão de Friedl Münch, e o carinho e dedicação são aparentes em cada acionamento, cada mecanismo, e no acabamento de cada peça.

Mesmo assim, pesando mais de 250 kg e regularmente passando dos 100 cv, a moto sempre foi algo sério, e simplesmente destruía os pneus da década de 60. Em 1970, Münch criou um monstro de 1.400 cm³ e 160 cv, aliviado em peso, para bater o recorde de velocidade em uma hora, então nas mãos do lendário Mike Hailwood e sua MV Agusta, com 232 km percorridos. Chamado de “Daytona Bomb” (acima), a moto já atingira 290 km/h na primeira volta da famosa pista na Flórida, quando começou a deixar pedaços de pneu por toda a pista. Sem outra saída a não ser cancelar a tentativa e voltar para casa, Münch deixou a moto numa garagem de Miami, esperando voltar no ano seguinte com pneus desenvolvidos para ela. A moto descansou no mesmo lugar por 10 anos, até ser leiloada pelos patrocinadores da malfadada tentativa de recorde, para saldar dívidas.
Com o passar do tempo, várias quase-falências depois, durante os anos 80 Münch acabou por se conformar com uma pequena oficina onde, junto com seu filho e um par de torneiros mecânicos de confiança, fazia kits de aumento de cilindrada (1.800 e 2.000 cm³) para a Mammut, e algumas motos sob encomenda (chamadas agora de "Titan 1800”, ou 2000), além de fazer a manutenção e modificação das motos já existentes. Nesse tempo, a NSU já não existia mais, desaparecendo definitivamente em 1977, mas Münch continuava experimentando com o velho quatro em linha, colocando compressores e turbocompressores em suas Titan. Um silencioso, mas poderoso culto a elas e a pessoa lentamente se formou e floresceu.
Em 1989, Friedl Münch foi convidado para ir aos EUA, com passagem paga, para o primeiro encontro de suas motos naquele país. A revista Cycle World estava presente, e gravou para posteridade o momento emocionante do envelhecido gnomo alemão que criava mamutes se reencontrando com oito deles, seus donos e famílias. Tão longe de sua pequena oficina, o velho Münch parecia perceber finalmente que tinha feito algo importante com sua adorada moto gigante. Havia um zunzunzum naquele dia que comparava o trabalho de Münch ao de outro artista do metal, Ettore Bugatti. O que o velho Friedl disse sobre isso, no seu carregado sotaque alemão, nos mostra, como quis provar, o que realmente é importante na vida:
Ja, elas são como um carro Bugatti, tem muito technisch nelas. E Friedl esta vivo ainda! Quando morrer, elas vão valer muito mais! Eu nunca pensei que veria estas motocicletas de novo; isto me faz muito feliz. Elas são minhas crianças, todas criadas por minha mão. Ja, crazy Friedl fez muita coisa em sua vida, afinal de contas!”
"O que fizemos apenas para nós mesmos morre conosco, o que fizemos para os outros e para o mundo, permanece e é imortal." - Albert Pike
Munch_1200TTSE_Outfit_left_side.jpg

Munch_1200TTSE

Munch_130_Kruse_1478.jpg

Munch_130

Munch_1967_Kruse_1467_3.jpg

Munch_1967

Munch_1969_TT_Kruse_1469.jpg

Munch_1969_TT_Kruse_1469

Munch_1971_201_Kruse_1470.jpg

Munch_1971_201_Kruse_1470

Nenhum comentário:

Postar um comentário