quarta-feira, 24 de março de 2010

A fúria de Christine


"Mostra para mim, Christine."
Com este pedido ela revelou a seu amado Arnie até onde podia chegar. Uma após outra, todas as marcas da brutalidade que sofrera se recuperaram em questão de instantes, diante dos olhos encantados do rapaz. Não era apenas um caso de amor doentio e mútuo: Christine era capaz de tudo, até de matar, para defender a honra de Arnie e para ser a única em sua vida. Sua ira deixou um rastro de intriga, terror e sangue.
Apesar dessa funesta descrição, Christine era apenas um Plymouth Fury 1958 vermelho e branco, reformado por um adolescente tímido e problemático que se apaixonou por “ela”, sem saber que o carro vinha equipado com uma alma atormentada como opcional de fábrica. Essa é a trama de
Christine, uma história baseada no livro homônimo do rei americano do terror literário, Stephen King, levada às telas de cinema em 1983 por John Carpenter.


O filme, no alto, utiliza um Fury vermelho e branco, mas até 1958 só estava 
disponível o tom creme das demais fotos.
O nome Fury já estava estabelecido no mercado americano havia anos quando o livro surgiu em 1982. Duraria até 1989 como Gran Fury, gêmeo do Dodge Diplomat. O modelo 1958 do filme é da segunda geração, apresentada um ano antes. A primeira havia surgido em 1956, no último fôlego dos Chryslers lançados em 1955, oferecidos por todas as divisões da empresa, sendo a Plymouth a que mais vendia.
Com o Fury a empresa tentava oferecer um pouco da esportividade que devia ao público deslumbrado com os novos carros esporte das concorrentes locais, o 
Corvette e o Thunderbird. Vinha apenas na versão cupê e trazia um V8 de 5,0 litros (303 pol3) que fazia 240 cv brutos a 4.800 rpm. Parece pouco? Pois, apesar de não ser o carro mais potente da América, vale frisar que naquele ano o Vette e o T-Bird chegavam no máximo a 225 cv. Mesmo com o conforto de carro grande, a fúria anunciada pelo nome não era ficção.


A linha lançada em 1957 inovou pela forma das colunas,
 no chamado "estilo forward" da Chrysler.
O ano de 1957 marcou a estréia do estilo forward (avançado) na Chrysler. A nova transmissão Torqueflite era operada por cinco botões. Nesse ano, até 290 cv a 5.400 rpm surgiam sob o capô do cupê, com seu V8 de 5,2 litros (nosso conhecido 318 dos Dodges), torque de 44,9 m.kgf e taxa de compressão de 9,25:1. Difícil era não apreciar seu belo desenho: foram necessários dois anos até a GM alcançar a Chrysler com carros igualmente mais baixos e simples, o que fez da empresa a referência em estilo até 1959 na década que mais valorizou esse aspecto.
Enquanto GM e Ford se esbaldavam com o estilo "cesta de piquenique" (colunas A e C em diagonal, mais próximas na linha da cintura que no teto), os novos Chryslers dispensavam tal recurso e faziam até as barbatanas dos pára-lamas traseiros parecerem um elemento harmônico no conjunto. Sem esses adereços comuns à época, os Chryslers 1957 prenunciavam o carro dos anos 60. E, entre as divisões da marca, a Plymouth conseguiu um das melhores resultados estéticos.

 linha Fury de 1956, 1957 e 1958, a partir da esquerda: depois da ampla remodelação
para 1957, apenas detalhes como faróis e grade mudaram no ano seguinte.

O linha 1958 do Fury entrou para a lista dos mais procurados por colecionadores, justamente pela projeção ganha com a história de King. Para diferenciá-la da 1957, basta notar os frisos da entrada de ar sob os pára-choques (verticais em 1957 e iguais à grade em 1958) e os quatro faróis (no 1958 eram iguais, ante aos centrais menores do ano anterior).

Mais que uma frente simplificada, a grande surpresa da Plymouth para aquele ano era o motor opcional Golden Commando, de 5,75 litros (350 pol3), que levava o cupê a 305 cv a 5.000 rpm, ou 315 cv com injeção de combustível. Era esse o motor de Christine. Para 1959 a Plymouth renomeou o modelo, ainda na segunda geração, como Sport Fury. O nome anterior designaria naquele ano só versões mais amenas, inclusive um sedã quatro-portas.




Em 1959 o Fury de duas portas tornava-se Sport Fury. O motor V8 de 5,75 litros
desenvolvia até 315 cv, no caso da versão com injeção.
O Sport Fury ganhou nova frente e traseira, como o restante da linha, além de uma versão conversível. A segunda geração durou até 1961, passando por revisões anuais que gradualmente dizimariam com muito mau gosto todo o impacto visual do estilo forward. A de 1960 o deixou parecendo uma bóia infantil em forma de baleia e a de 1961, sem barbatanas, ainda era muito estranha. Resultado: queda nas vendas.

O Fury foi mais um notável projeto americano de esportivo que perdeu seu propósito inicial para virar uma carro para a família, a exemplo do T-Bird nos anos 60. Tornou-se o modelo grande da linha, com vários tipos de carroceria. A partir de 1962 começou a ganhar a cada ano potência e versões, a ponto de serem 60 (!) na linha 1969. Passou os últimos 15 anos de vida agradando mais como frota de polícia que carro familiar. Mas sempre teremos 
Christine para lembrar a fase áurea do Fury.

Seus fãs não se conformam com os carros destruídos na filmagem. Modelos inferiores da linha também foram transformados em Christines para isso e ainda o são por aficionados, que também adoram listar erros e diferenças entre o livro e o filme. No primeiro, Christine tinha quatro portas, o que só seria possível no Fury 1959. O filme corrigiu o engano, mas não outro tão óbvio quanto: de 1956 a 1958 o Fury vinha apenas na combinação das cores creme e amarelo-ouro.

Um pedido especial seria a justificativa da trama. Embora o vermelho fosse mais apropriado para um carro chamado Fury, ele só estava disponível no menos equipado Belvedere. O livro ainda menciona transmissão Hydramatic (da GM) e até o câmbio que se move para 
drive, ignorando o fato de o Fury usar botões. Mas quem se incomoda tanto se King e a equipe do filme não foram tão fiéis à realidade? O importante é que eles ajudaram a criar na ficção um belo e temível mito, que dispara muita adrenalina nas veias dos fãs do carro. Como ocorria com as vítimas de Christine.


christine_1983_poster_grande





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